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PQ CHORAS?

Ir Ana Roy 

Ir. Ana Roy
As lágrimas de Nossa Senhora da Salette entram de cheio no pranto do profeta Jeremias, um homem e uma mulher sumamente sensíveis, comovidos, tocados pela situação do povo que manifesta seus sentimentos e suas emoções da mesma maneira:

“que meus olhos derramem lágrimas dia e noite
porque a Virgem, filha do meu povo foi ferida...
Se saio para o campo, eis os feridos da espada;
Se entro na cidade, eis as vítimas da fome
Pois até o profeta e o sacerdote atravessam
A terra e não compreendem!”Jer 14, 17.18 

De Jerusalém ao Monte Planeau, a distância secular, mesma visão da realidade, mesma reação! Queria iniciar esta meditação por uma breve reflexão sobre as lágrimas, sua linguagem, sua mensagem.

Hoje os estudiosos das ciências humanas dão uma atenção especial a esta expressão do ser humano dotado da capacidade de chorar, tanto o homem como a mulher. 

A cultura colonizadora dos senhores encalhou as lágrimas.
Deviam ser retidas ou apenas derramadas sobre o ombro de um amigo ou uma amiga no escondido. 

Hoje a televisão descartou essa proibição e não se priva de molhar a tela com lágrimas de homens e mulheres, aliás, nem sempre para o melhor. 

No entanto, os psicólogos estão vendo na possibilidade de chorar üma passagem do ser desumano ao humano”. 

Assim, dizem eles, quando presenciamos um drama, a lágrima não aparece no momento pior, mas sim emerge depois na releitura da situação vivenciada – “Passagem do desumano ao humano”! 

Neste momento rolam lágrimas, manifesta-se o sofrimento, espécie de surto de alívio, de esperança onde vigore o desespero. 

A ética deste choro profundo significa a passagem de uma fronteira, talvez de todas as fronteiras, as divisões, as multiformes discriminações, a miséria, a fome. 

As desfigurações de todas essas situações configuram quem chora sobre elas, com as próprias vítimas sofredoras.
Sem dúvida as lágrimas de Jeremias e de Salette têm a mesma origem, lamentam o mesmo drama da humanidade e amolecem o chão da injustiça, da carência de solidariedade.
Meditaremos sobre dois pontos: 

* Maria na História da Salvação Redentora
* Maria da Compaixão Reconciliadora 

1- Maria na História da Salvação Redentora 

· Contemplamo-la no quadro grandioso das montanhas abrindo um horizonte sem fim de luz e de silêncio, no beijo do céu com a terra. 

· Contemplamo-la, Maria, criatura de nossa raça, situada historicamente no tangente dos dois testamento para unir, na sua forte fragilidade: 

A humanidade marcada e ferida desde as origens à Humanidade Plena
concebida e tecida no seu próprio corpo.
Tal missão a envolve totalmente, e suas lágrimas expressam o seu consentimento. Com o salmista ela pode dizer:
“torrentes de lágrimas descem dos meus olhos
porque não observam a tua lei.” Sl 119,15 

Contemplamos Maria de Salette, que chora ao ver o quanto a humanidade se afastou de sua vocação, humanidade dilacerada, dividida, opressora... 

Haveria uma semelhança logínqua entre Rebeca a ancestral e a Bela Dama do Planeau, na genealogia de Deus? 

No livro do Gênesis, a Segunda matriarca gestante experimenta no seu ser a realidade dramática – e permanente – dos conflitos que gera a usurpação do poder: 

“Duas nações estão no teu seio;
dois povos saídos de ti separar-se-ão
e um dominará o outro.” Gn 25,23 

Maria, Mãe de Jesus, Deus conosco, carrega no seu ventre o Santo de Israel e muito mais do que dois povos em ruptura de alianças, mas todos os povos da terra para levá-los a plenitude de sua vocação divina-humana: “Fazer tudo aquilo que Ele disser”Jo 2.

Ontologicamente Maria é reconciliadora e não há reconciliação possível sem lágrimas.
No silêncio, com o rosto discretamente escondido em suas mãos, Maria na sua grandiosa dignidade, derrama as lágrimas, as mais fecundas e redentoras que nenhum ser humano sequer teria chorado a não ser Jesus. 

Já os sábios de Israel, num antropomorfismo ousado, não tiveram medo de nos introduzir nas lágrimas de Deus. 

O Talmud fala das lágrimas secretas de Deus sobre a maldade dos homens. E os artistas representarão o Deus que chora. 

Maria com uma sensibilidade aguçada diante de uma realidade tão sofredora entra na atitude compassiva e misericordiosa de Deus. 

Aliás, desde o anúncio de Gabriel, de um Reino sem fim para o Menino... até a profecia de Simeão na apresentação do Menino, Maria acolhe “a espada que havia de lhe atravessar o coração” . Ela entra na missão redentora do seu Filho: “reunir todos os filhos de Deus dispersos” que significa a reconciliação universal. 

Embora o Evangelho não fale propriamente das lágrimas de Maria nas diferentes etapas de sua vida, penso que o respeito dos autores e a veneração das primeiras comunidades cristãs silenciaram estes aspecto por carinhosa delicadeza. 

A Tradição falou, a História também e Maria de Salette mostra que as lágrimas abrem brecha no sofrimento, pérolas preciosas transparentes, livres de qualquer complacência, somente profundamente compassivas. 

Diria, inclusive, que o derramar das lágrimas revelam uma dimensão essencial da nossa condição carnal, corpo criado à imagem de Deus. 

Como, então, Maria a criatura concebida sem pecado, teria dispensado de chorar, aliás, como toda mãe, some os erros dos outro? 

Toda recolhida, no Monte Planeau, sentada e inclinada, Maria esconde o seu rosto porque suas lágrimas são palavras dirigidas Àquele que as interpreta.

Maria olha para o mundo e o envolve de ternura comovida com a visão transfigurada das Bem Aventuranças: 

“Verei com os olhos novos... 

cada coisa em seu primeiro nome
e cada nome em sua realizada essência... 

e fartarei meus olhos em tua glória...” D. Pedro Casaldalega

2- Maria da Compaixão Reconciliadora, aquela que lamenta e que consola. 

Na crise do final do século décimo nono, na França, do alto da montanha alpestre, Maria, com as duas crianças privilegiadas faz uma releitura dos acontecimentos, em profundidade histórica. 

Tudo parte da realidade. Ela capta o dinamismo oculto da vida com suas tensões e contradições; com a modernidade que vem abalando os valores evangélicos. 

Maria permanece hoje, num mundo que mata, a profetiza da vida, à maneira de Isaías, no empenho de uma consolação criativa e reconciliadora. 

“Há quanto tempo que sofro por vós” exclama ela, colocando toda sua capacidade de interiorização, de libertação, de emoção a serviço de sua missão. 

É deste carisma de compaixão, tão profundamente marial que nasceu uma família religiosa de homens e mulheres para assumir a diaconia da lamentação, ecoando os acentos proféticos do Exílio com exigências de conversão necessária no presente momento: 

“Se se converterem as pedras se transformarão em montões de trigo... 
 e as batatinhas serão plantadas nos roçados.

“Maria deixa ressoar no seu coração as palavras de Jeremias – As lamentações do profeta externizam a sua comunhão com o povo sofredor. 

Trata-se de uma graça de Deus, toque de sua terna compaixão para repudiar, rejeitar, protestar contra tudo aquilo que desagrada o ser humano e o leva à morte. 


Esta qualidade integra a compaixão que dá plena audiência ao pobre, a ponto de derramar lágrimas sobre qualquer situação degradante e indigna do homem. 

A espiritualidade autêntica passa pelas lágrimas ao as realidades que podemos contemplar como Jesus mirando Jerusalém: 

“Jerusalém, Jerusalém, se você compreendesse, hoje, o caminho da paz... você não reconheceu o tempo em que Deus veio visitá-la” (lc 19,41) bem como não o reconheceu o povo da França naquele tempo – E nós reconheceremos?
Este reconhecimento, quando se manifesta, deixa emergir a consolação misericordiosa que nasce no coração de Deus e da qual Isaías foi o campeão: 

“Consolai, consolai o meu povo...” lhe pedia Javé.
No entanto só pode consolar quem sabe lamentar.
Maria de Salette faz a síntese entre essas duas atitudes.
Este duplo serviço assina um pacto definitivo com a esperança, base de toda reconciliação.
Inclusive a semântica hebraica da consolação introduz a um simbolismo rico:
Consolar significa “respirar na respiração do outro” dispensando toda palavra que cede lugar às silenciosas lágrimas.
Daí, a necessidade de se fazer próximo do outro, comungar com seu sopro sofredor, para vivenciar com ele uma caminhada regenerada, reconciliada com a vida.
Tal é a maneira de consolar de Maria, em forma de quenose como a do Filho, esvaziada e expropriada de qualquer dominação.
Então, na confluência de ambos sopros, o do consolador e do consolado, poderá passar o Único Sopro Consolador que fecunda, recria, reconcilia na paz.
Salette compassiva, profetiza da conversão nos ensina que compaixão, lamentação e consolação formam o tripé que segura uma vocação dedicada à reconciliação. Isso passa pelas lágrimas.
“Por que choras, Bela Senhora?
Tu a mais humana das mulheres,
Ensina teus filhos saletinos serem plenamente homens na capacidade de compadecer e chorar para reconciliar, até o dia em que “Deus enxugará todas as lágrimas” na terra nova que contribuímos, hoje a construir.
“Então verei com olhos novos
Verei a alma gêmea de cada homem
Na inteira verdade de sua querência...
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D. Pedro Casaldaliga
e fartarei meus olhos em tua glória.”
D. Pedro Casaldaliga

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